Uma urgência chamada tocar
Não há como se sustentar no mundo apenas com pernas, pés e uma coluna verticalizada...
Talvez seja inevitável tentarmos compreender ao menos parte de nossa condição humana sem pensarmos no toque. Digo isso pois seria impossível pensar nossa humanidade sem contato, sem proximidade. Essas e outras indagações sobre a importância do toque em nossa história são trazidas pelo antropólogo Ashley Montagu em seu livro mais conhecido “Tocar, o significado humano da pele”.
A pele que Montagu se interessa não é apenas a do órgão que limita um dentro e um fora, mas um sistema que está envolvimento no crescimento e desenvolvimento do sujeito em relação. Ao se opor à psicossomática ele nos leva primariamente em relação ao corpo, ao que é encarnado, sentido e fisiologicamente expresso e se interessa pela pessoa em ação. A pele, embora esteja envolvida nos sentidos mecânicos, nociceptivos, térmicos e proprioceptivos, está, sobretudo, envolvida em nossa possibilidade e capacidade de incorporar o mundo em nós mesmos, pois é na pele que o mundo é revelado e que nosso interior se revela como o tal “espelho bifásico” (p.29) que ele apresenta.
Conhecer pela pele é um sentido adquirido, maturado pela experiência viva de tocar e ser tocado. Uma experiência que não só nos mantem vivos, mas que atua em nosso desenvolvimento por inteiro, mesmo quando alguns sentidos nos faltam ou são prejudicados de alguma forma. Para Montagu, não há a possibilidade de desenvolvimento que não esteja direta ou indiretamente ligada ao tocar. É dessa maneira em que a pergunta central do livro se contorna, se forma, é tocada por nós enquanto nos deparamos com a necessidade de mergulhar na influência que a pele tem sobre desenvolvimento do organismo, principalmente no início da vida.
O toque para Montagu não é apenas aquilo que é possibilitado pelas mãos. O útero materno provê nossa primeira experiência de ser tocado e nos encaminha em direção ao desenvolvimento de nossos diferentes sistemas de sustentação, afetados pelo toque - pois não há como se sustentar no mundo apenas com pernas, pés e uma coluna verticalizada. É preciso ir além, e descobrir que nossa sustentação é feita pelo contato com o mundo. Um contato que se inicia com o corpo da mãe antes e após o nascimento e que se ressignifica durante nossa história de significações. É impossível sobreviver em privação do toque, mesmo sabendo que com ele se integram outros modais sensoriais, outras experiências simbólicas. Há de ser valorizar o toque no mundo uma vez que “tato e contato são necessariamente o fator mais conclusivo na determinação da estrutura de nosso mundo” (p.129).
Nossa realidade somática é pela pele constituída e pelo toque desenvolvida
Nossa capacidade esterognóstica, isto é, nossa capacidade de perceber objetos e formas pelo tato, permite que entendamos a pele como o órgão que tudo vê. Mais ainda, o órgão que permite e facilita o trânsito do mundo em nós mesmos e de nós mesmos com o mundo, no espaço e no tempo, pois “pois não há como se sustentar no mundo apenas com pernas, pés e uma coluna verticalizada. Esse trânsito forja realidades não fixas que tem como alimento primordial a sensação corporal. Nossa realidade somática é pela pele constituída e pelo toque desenvolvida, a experiência tátil pode assim integrar a regulação fisiológica e psicológica, religando nossa experiência afetiva e reflexiva no mundo “pois não há ideia na mente de uma pessoa que antes não tenha sido gerada nos órgãos dos sentidos” (Thomas Hobbes | 1588–1679).
Tocar incorpora um conhecimento que não é primariamente descritivo, é afetivo por natureza e por isso nos diz sem palavras, nos move sem sequências pré definidas
Nossas ideias e ideais emergem da diferenciação enquanto sujeitos facilitada pela pele, nosso sentimento de identidade é modulado pelo toque e “decorre de uma sensação de contato com o corpo” (p. 254), uma vez que “o vínculo com o próprio corpo é a base dos vínculos com as outras pessoas” (p. 255). Desta forma nos aproximamos e distanciamos de lugares, pessoas e coisas, nos conduzimos afetivamente ainda que não saibamos explicar inteiramente o que nos passa. Tocar incorpora um conhecimento que não é primariamente descritivo, é afetivo por natureza e por isso nos diz sem palavras, nos move sem sequências pré definidas.
Para Montagu, tocar é uma ato de comunicação em sentido amplo e o real significado humano do tocar é expresso “quando o afeto e o envolvimento são transmitidos pelo tato” (p. 379). Embora o acompanhe, penso que nos fazemos pelo toque, nos tornamos real por ele e, assim, permitimos um mundo em que me torne parte importante dele, um mundo de pessoas em contato.
Tocar, o significado humano da pele foi o guia de nosso último grupo de estudos. Se você se interessa por temas como esse e gostaria de se integrar à uma comunidade de pessoas que buscam partilhar suas experiências com o movimento, conheça a Comunidade deixamover aqui.
Referência: Montagu, A. (1971). Touching: The Human Significance of the Skin. New York: Harper & Row.